Myanmar: modelo de Estado-pivô
- Thiago Oliveira
- 9 de jul. de 2024
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Atualizado: 9 de jul. de 2024

O Myanmar é um país fadado, para bem ou para mal, a sua geografia; segue-se que suas características o tornam um estudo de caso ideal para a Geopolítica. A importância geopolítica do Myanmar deriva, fundamentalmente, de sua condição como Estado-pivô. Criado por Mackinder e recontextualizado por Zbigniew Brzezinski, esse termo, central em geopolítica, indica uma nação que exerce o papel de conector entre regiões e de acesso de primeira ordem a recursos para um ou mais países vizinhos¹. Ele constitui um carrefour regional², o que o torna objeto estratégico para todas as potências regionais. Assim, sua relevância deve-se a sua localização chave, cuja mera existência no espaço altera e condiciona o comportamento de seus vizinhos³.
No caso mianmarense, esses vizinhos são a China e a Índia; ambos mantêm ativo interesse e possuem uma gama de projetos no Myanmar⁴. Os vales fluviográficos do país constituem uma conexão entre o espaço da bacia de Bengala e do mundo índico com a hinterland chinesa e, mais além, o Extremo Oriente. Dessa maneira, o Myanmar constitui um possível corredor terrestre alternativo ao estreito de Málaca, a atrair o interesse não só dos países do seu imediato entorno, mas também de nações mais distantes como Emirados Árabes Unidos⁵, Egito⁶ e Japão⁷.

Além disso, ele representa o flanco esquerdo da ASEAN, a funcionar como porta de entrada ao Sudeste Asiático. Para a vizinha Tailândia, hub desse espaço, a estabilidade política mianmarense é fundamental para garantir o seu acesso aos mercados indianos e chineses. Por fim, em menor escala, ele é um pivô local para o Laos, o norte tailandês e o Yunnan chinês, por lhes apresentar o meio ideal de escoarem seus recursos e produtos, assim como de acessarem mercados, pelo mar.
Acrescenta-se que, dentro de seu próprio território, a geografia já enriqueceria o Myanmar em recursos estratégicos a ponto de torná-lo um pivô regional. Suas redes de montanhas, em forma de U invertido, além de dotarem o país de uma defesa natural, são ricos em toda sorte de minérios, a incluir uma das maiores reservas de estanho do mundo e gemas preciosas, de renome internacional⁸. Dentre seus tesouros, destaca-se a presença de terras raras⁹, fundamentais para a indústria chinesa e facilmente escoáveis graças à rede de rios navegáveis que nascem de suas encostas. A densa malha hidrográfica mianmarense, igualmente, dota o país de um imenso potencial para a energia hidrelétrica, que poderia não só energizar o país, mas também seus vizinhos, em especial o vizinho chinês¹⁰.
Já o vale do Irrawaddy irriga o planalto central, que protegido das monções, forma uma região seca que combina a alta fertilidade da terra das monções sem os malefícios das grandes chuvas. O imenso potencial agrícola do território já fora explorado pelos britânicos, que tornaram a antiga Birmânia o maior produtor de arroz do mundo, exportando para toda a região - um status que pode retornar, uma vez que a estabilidade retorne ao país¹¹. Por fim, os deltas de seus vales fluviais fornecem portos naturais estratégicos, explorados já nos tempos dos portugueses, devido a sua grande capacidade de se transformarem, sob as condições certas, em hubs portuários de nível internacional.
Todavia, como toda característica geopolítica, a pivoticidade apresenta um caráter ambíguo: se pode representar uma oportunidade, também pode constituir uma vulnerabilidade, conforme as circunstâncias. As riquezas do Myanmar atraíram a cobiça dos grandes impérios: primeiro os mongóis, depois os portugueses, ingleses e japoneses. O temor em relação à interferência estrangeira continua a ser um dos grandes motores do nacionalismo mianmarense, a fundamentar uma arraigada postura isolacionista¹². Ainda na política doméstica, a questão da divisão interna dos recursos alimenta conflitos sociais e étnicos (dentre os quais destaca-se, na mídia internacional, a situação dos rohingyas, a minoria islâmica no oeste de país, que será mais explorada em um post futuro), agravados pela multiplicidade religiosa e linguística, assim como pela cantonização do país provocada pela sua diversidade geográfica. As montanhas enclavizam as minorias e sustentam suas guerrilhas, algumas das quais constituem o mais longo conflito armado em continuidade do mundo, datando desde 1948.

Desde 2022, os espaços rurais da heartland mianmarense também se belificaram, com a eclosão do conflito entre forças pró e contra o governo estabelecido em 2021. De um lado, encontram-se as forças do Conselho Administrativo Estatal (SAC, na sigla em inglês), controlado pelo Tatmadaw, as forças armadas do país, e sua principal aliada, a milícia Puysawhti. Do outro lado, estão as forças anti-SAC, organizadas em milícias conhecidas como People Defense Forces (PDFs), aliadas a algumas organizações étnicas armadas (EAOs na sigla em inglês)¹³. A diplomacia dos países vizinhos se esforça por buscar um fim pacífico para os confrontos, devido ao efeito desestabilizador que um Myanmar fraturado pode exercer na região.
Também o Brasil possui grande interesse em ver um Myanmar estável e próspero. Primeiro, devido aos grandes potenciais para a cooperação sul-sul entre os dois países, seja na produção agrícola em suas vastas áreas férteis especializadas na cultura do arroz, seja na produção energética, tanto hidrelétrica quanto de biomassa. Soma-se um grande potencial de cooperação na proteção ambiental, em particular na preservação de florestas, em iniciativas de criação de reservas e de reflorestamento nos espaços montanhosos do país. Há, inclusive, grande potencial para a realização de projetos de cooperação triangular, a ter em vista o numeroso número de parceiros interessados no desenvolvimento da região, como a China e os países árabes.
O Myanmar atrai, igualmente, o interesse nacional devido à sua localização estratégica para os BRICS+. Constitui parte fundamental da grande estratégia do agrupamento a identificação e incorporação de estados-pivô localizados entre os seus membros, de modo a diminuir os seus pontos de estrangulamento e incrementar a sua integração interna. No caso, o Myanmar corresponde a um espaço chave para integrar a China à Índia, por constituir uma área não disputada, de relevo menos acidentado do que o Himalaia e com acesso ao mar. Além disso, a estabilização e integração do Myanmar ao agrupamento dos BRICS+ atende aos interesses de seus membros árabes e africanos, por fornecer uma nova entrada ao mercado chinês, sem depender do estreito de Málaca. Por fim, o país tende a servir como ponta de lança para a expansão do agrupamento no Sudeste Asiático e para sua melhor integração com a ASEAN. Assim, conclui-se que a condição mianmarense como estado-pivô apresenta uma grande oportunidade para o Brasil e para os BRICS+ de maneira geral, sendo de interesse comum a sua estabilização e integração ao grupo.
Citações:
[1] BRZEZINSKI, Zbigniew. The Grand Chessboard: American Primacy and it’s Geostrategic Imperatives. Basic Books, 1998. p. 41. "Geopolitical pivots are the states whose importance is derived not from their power and motivation but rather from their sensitive location and from the consequences of their potentially vulnerable condition for the behavior of geostrategic players. Most often, geopolitical pivots are determined by their geography, which in some cases gives them a special role either in denning access to important areas or in denying resources to a significant player. In some cases, a geopolitical pivot may act as a defensive shield for a vital state or even a region. Sometimes, the very existence of a geopolitical pivot can be said to have very significant political and cultural consequences for a more active neighboring geostrategic player."
[2] GOURDIN, Patrice. Manuel de géopolitique, Vincennes: Diploweb 2019. cap 2. Disponível em: https://www.diploweb.com/2-La-situation-geographique.html
[3] Para uma visão mais aprofundada acerca da evolução do conceito, desde sua formulação mais generalista em Mackynder, até sua reformulação atual em Brzezinski, ver: Sweijs, Tim, Willem Theo Oosterveld, Emily Knowles, and Menno Schellekens. Why are pivot states so pivotal? The role of pivot states in regional and global security. Hague Centre for Strategic Studies, 2014. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/resrep12620. "Pivot states are states that possess military, economic or ideational strategic assets
that are coveted by great powers. Pivot states are caught in the middle of overlapping
spheres of influence of multiple great powers as measured by associations that
consist of ties that bind (military and economic agreements and cultural affinities) and
relationships that flow (arms and commodities trade and discourse). A change in a
pivot state’s association has important repercussions for regional and global security.
States that find themselves in overlapping spheres of interest are focal points of
where great power interests can collide and also clash. States located at the seams of
the international system have at various moments in history been crucial to the
security and stability of the international system."
[4] Para o status atual dos projetos chineses na região, ver: https://www.tearline.mil/public_page/china-investments-in-myanmar Para os projetos indianos, ver: https://embassyofindiayangon.gov.in/pages/MTUz
[8] Para um estudo detalhado do imenso potencial da mineração mianmarense, ver: Nicholas J. Gardiner, Laurence J. Robb, Christopher K. Morley, Michael P. Searle, Peter A. Cawood, Martin J. Whitehouse, Christopher L. Kirkland, Nick M.W. Roberts, Tin Aung Myint, The tectonic and metallogenic framework of Myanmar: A Tethyan mineral system, Ore Geology Reviews, Volume 79, 2016, Pages 26-45, Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.oregeorev.2016.04.024.
[9] Acerca do crescimento recente da exploração de terras raras mianmarenses pela China, ver: Chinkaka, Emmanuel, Julie Michelle Klinger, Kyle Frankel Davis, and Federica Bianco. 2023. "Unexpected Expansion of Rare-Earth Element Mining Activities in the Myanmar–China Border Region" Remote Sensing 15, no. 18: 4597. Disponível em: https://doi.org/10.3390/rs15184597
[10] Acerca do potencial da produção hidrelétrica do Myanmar para o desenvolvimento regional, ver: KATTELUS, Mirja; RAHAMAN, Muhammad Mizanur; VARIS, Olli. Hydropower development in Myanmar and its implications on regional energy cooperation. International Journal of Sustainable Society 2015. p. 42-66.
[11] Acerca do histórico e da atual potencialidade da cultura do arroz mianmarense, ver: https://www.ricemyanmar.com/myanmar-rice/
[12] Tese desenvolvida em maiores detalhes em: CHURCH, Peter. A Short History of South-East Asia. 5. ed. John Wiley & Sons (Asia); ASEAN Focus Group, 1999. p. 108-121
[13] Para uma visão detalhada e didática de como os confrontos no Myanmar se relacionam com a geografia da região, ver a plataforma disponibilizada pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos em: https://myanmar.iiss.org/analysis