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Entre Gregos e Romanos: História e Diplomacia na Florença de Maquiavel

  • Foto do escritor: Thiago Oliveira
    Thiago Oliveira
  • 17 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura


A luz do fim da tarde caia, sonolenta, pelas janelas rudes, a se afastar com ternura da penumbra que começava a cobrir os salões do Studio Fiorentino. Nos balcões daquela bruta escola de pedra, um edifício mais adequado ao gótico do que ao estilo renascentista que florescia ao seu redor, sentava-se a nata da inteligentsia da capital toscana. Dentre eles, um jovem Nicolau Maquiavel ouvia atento as lições do mestre. Para ele, aquela aula não era como outra qualquer. Há muito já aprendera o fundamental do latim, sua poesia, seus autores, e até arriscara começar a escrever uma adaptação para o toscano da comédia de Terêncio"Andria".


Nas aulas de oratória de Marcello Virgilio di Adriani, contudo, aprendia-se muito mais do que métrica e gramática. Aprendia-se, sim, como a retórica era um instrumento, a serviço da República, que podia-se aprender por meio dos clássicos gregos e romanos. Com fina ironia, o jovem mestre – pois tinha apenas trinta anos! - ridicularizava aqueles que consideravam os autores clássicos ultrapassados: eles é que eram velhacos demais para ver a jovialidade eterna daqueles textos. Sua leitura carregava a chave para a resolução dos problemas modernos. Assim, elevava a voz para ler a denúncia de Lucrécio contra a corrupção dos governos e a abaixava, até um tom de confidência, para ensinar o valor ético e cívico das lições de Tito Lívio.


Aquelas aulas enchiam a cabeça do jovem Maquiavel; energizavam-no, enquanto plantavam sementes que brotariam nos anos vindouros. E não só nele, mas em toda uma geração, que cresceria para dar vida à República Florentina e encantar o mundo com a arte da Renascença. Pois naquela sala, de fato, da boca daquele professor de nariz aquilino e barba à romana, podia-se ouvir a voz de Roma renascida.


***


O consenso entre os historiadores maquiavelistas é que as aulas de Marcello Adriani foram um momento transformador na vida do futuro escritor do Príncipe¹. Cresce mesmo a noção de que o curso ministrado por esse até hoje relativamente desconhecido professor do Studio Fiorentino, a academia florentina de humanidades, terá tido um impacto maior sobre a história das ideias políticas ocidentais - e sobre a arte da diplomacia, em particular.


Era o ano de 1494, quando Maquiavel começou a cursar as aulas de Adriani. O regime dos Médici acabara de ruir, perante os protestos dos fanáticos seguidores de Savonarola. Uma República fora declarada, mas não se sabia o que se faria dela. Muitos em Florença sentiam-se perdidos, Maquiavel inclusive. Então com 25 anos, além de viver uma situação financeira difícil, ele fora apoiador dos Médici, de modo que sua carreira - e sua própria vida - pareciam sem futuro.


Não surpreende, portanto, que ele e muitos tenham abraçado de coração o programa de Adriani, e que ele hoje venha a personificar o ideal daquela era, o Alto Renascimento. Sua ideia central pode ser facilmente resumida: que o estudo atento e aprofundado da História deve formar uma classe de servidores públicos eficazes, mais capazes de conduzir a política externa do país e de produzir uma República próspera e forte. Tratava-se de uma tese perigosa, já que aquele era o tempo nos qual Savonarola defendia que o estudo da história pagã era pecaminoso, em seus inflamados sermões na Catedral de Santa Maria del Fiori. As brasas da "Fogueira das Vaidades" brilhavam, ameaçadoras, perto do Studio. Por pouco, a defesa do estudo de História na preparação para a vida pública não foi do berço para as chamas. A habilidade política de Adriani, felizmente, foi a sua salvação, e ele sobreviveu intacto ao reinado, à queda e à execução do temível frei. Logo, era Adriani quem ascendia aos mais elevados escalões da política florentina; nomeado Chanceler em 1498, permaneceria no cargo até o fim da República, como cabeça de todos os esforços diplomáticos do país.


A base de seu argumento é simples, mas suas consequências são radicais². A vida pública, ainda mais em sua esfera internacional, é composta por uma miríade de eventos inesperados que se multiplicam em profusão. Ignorantes da História, os homens seriam como um grupo de invasores das montanhas a adentrar em uma magnífica cidade. São tomados de medo e assombro, incapazes de lidar com o excesso de informação e com o senso de novidade de tudo aquilo que se apresenta. O conhecimento da História, todavia, liberta o homem desse maravilhamento. Como um mapa, revela-lhe os caminhos já percorridos e lhe aponta as possibilidades a percorrer. Em suma, dota-lhe de um arcabouço teórico prévio, com o qual pode lidar sem assombro com os eventos de sua época³.


A história grega e romana teria uma importância especial, devido a suas respectivas experiências republicanas. Seu atento estudo dota o servidor do respeito e compreensão das instituições da República, em especial do serviço imparcial e da divisão entre coisa pública e privada. Acima de tudo, ela ensina a retórica republicana, cujo exercício seria fundamental para o funcionamento da própria República. Em resumo, a História constituiria um rico tesouro, de conceitos e exemplos, imprescindíveis para todo operador político. Os servidores da República, portanto, devem ser detentores de uma profunda formação histórica. Já se pode contemplar, daí, a semente das futuras academias administrativas, políticas e diplomáticas.


Segue-se, igualmente, que o ensino da História formaria tanto uma teoria quanto uma prática. A política externa foi logo entendida como o campo mais evidente para sua aplicação. Maquiavel, fiel seguidor da letra do mestre, é um exímio exemplo do caminho proposto. Já ao final das aulas, começou uma tradução primorosa da obra de Lucrécio, que o apresentou a um conceito-chave, base de sua futura obra filosófica: o de luta entre agência humana e a Fortuna. Embarcaria, em seguida, na carreira diplomática, ascendendo a Segundo-Chanceler da República, na qual aplicaria com gosto seu conhecimento histórico em suas embaixadas, em suas análises de países e em suas notas enviadas aos seus superiores. Famosamente, após o fim de sua carreira, escreveu sobre como vivia em conversa com os antigos e, até na beira da morte, brincaria que, caso fosse ao inferno, o lado bom seria estar do lado dos autores pagãos que tanto amava.


***


“O passado é um país estrangeiro: lá faziam-se as coisas de forma diferente”. O diplomata é responsável por identificar as oportunidades e obstáculos para a persecução do interesse nacional no setor externo; é natural, portanto, que ele também o faça com relação a esse mais estranho dos países, o passado. O labor do historiador sempre foi natural e mesmo necessário para o diplomata. Na prática diplomática nacional, ninguém menos do que o Barão do Rio Branco compreendia essa estreita relação e soube, como ninguém, utilizá-la em favor dos interesses do Brasil. Na teorização dessa relação, porém, merece destaque no exame histórico Maquiavel e seu admirável professor, Marcello Adriani.*


Citações:

[1] A seguinte análise da relação segue a abordagem de LEE, Alexander. Machiavelli: His Life and Times. London: Picador, 2020. p.104-150 e P. Godman, From Poliziano to Machiavelli: Florentine Humanism in the High Renaissance (Princeton NJ: Princeton University Press, 1998), pp. 144–67.

[2] Para uma leitura direta dos argumentos de Adriani, leiam-se as suas prolusiones em: Florence, Biblioteca Riccardiana MS 811

[3] Veja-se, para fins de comparação, uma argumentação muito parecida em Kenneth Waltz, na defesa do uso da Teoria para a análise de Política Internacional, logo no início de: WALTZ, Kenneth. Theory of International Politics. Longman higher Education, 1979. p. 4.

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