A diplomacia na invenção da escrita
- Thiago Oliveira
- 8 de jul. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 18 de jul. de 2024

Já é lugar comum abordar a relação entre diplomacia e literatura; são poucos, porém, os que tem consciência da sua antiguidade. De fato, permanece supreendentemente incomum apontarem que ambas nasceram juntas; ou seja, que os mais antigos relatos do nascimento da escrita coincidem com os da diplomacia. Isso porque o relato épico do surgimento da escrita entre os sumérios, seus inventores, narra ter ela sido um presente dos deuses para um diplomata, com vista a facilitar seu trabalho. Quem nos conta isso é o autor anônimo do épico A Questão de Arrata¹, ainda sem tradução direta para o português. Antes dos poetas, dos jornalistas, dos advogados, dos escritores, escreviam os diplomatas.
Ainda que colorido pelos tons religiosos da época, lê-se nas entrelinhas do relato sumério a relação direta no surgimento dos dois. A história, bem simples, começa com o surgimento da própria diplomacia, por uma revelação divina. Antes da invenção do comércio, o lendário rei Enmerkar, da cidade de Uruk, devoto da deusa Innana, desejava enfeitar o templo da deusa da melhor forma. Os materiais mais belos, todavia, como as preciosas pedras de lápis-lazúli, não podem ser encontradas em seu reino; mas, apenas, na rica cidade independente de Arrata. Sem saber o que fazer, o rei consulta a deusa, que o instrui a separar um homem e dar-lhe poderes para representá-lo, como se fosse sua voz, junto à corte do rei de Arrata. O devoto rei assim o faz, a estabelecer, portanto, a primeira troca de contatos diplomáticos da história. Assim, do conselho de Innana, nasce a diplomacia².
Prosseguindo o relato, esse mensageiro segue viajando de uma corte à outra para transmitir mensagens de Estado cada vez maiores, com uma dificuldade de decorá-las cada vez maior. Chega um dia no qual o rei Enmerkar faz uma declaração de intenções tão longa, que o pobre diplomata admite ser incapaz de memorizar tudo o que ela contém e repeti-la na outra corte (perceba-se que o clássico conflito acerca da dificuldades de representação entre o Estado e seus representantes já aparecia para os sumérios). Solidarizado, o rei cria um engenho para facilitar a vida do diplomata: faz uma placa de barro e nela inscreve sinais, contendo as informações que o mensageiro deveria repassar³. Maravilhado, o diplomata sai dali imediatamente para a corte de Arrata. Ao final do imbróglio diplomático, que se sustém por anos, a deusa Inanna aconselha Enmerkar a fechar o que seria o primeiro acordo comercial da história junto à outra cidade⁴.
Dessa forma, estabelece-se uma relação triangular diplomacia-escrita-comércio, desde o berço do relato histórico. Mais do que isso, a própria história escrita parece assim nascer da atividade diplomática. E, por consequência, todos os trabalhos saídos da escrita, da arte literária e da extensão do poder burocrático do Estado surgem em decorrência da diplomacia. Não escaparia ao observador atento constatar a existência uma relação intrínseca entre ela e todas essas esferas do labor humano. Uma relação que não deve ser ignorada, pois conduz (como já bem aperceberam os antigos sumérios) a maiores trocas e a relações pacíficas entre as nações. Cabe ao mundo de hoje aprender com essas lições antigas e permitir à diplomacia continuar a escrever a história.
Citações:
[1] Black, J.A.; Cunningham, G.; Fluckiger-Hawker, E; Robson, E.; Zólyomi, G. Enmerkar and the lord of Aratta: translation, The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature, Oxford 1998. Disponível em: <http://www-etcsl.orient.ox.ac.uk/>. Acesso em: 05/05/2024.
[2] ibidem. "105-107. The lord gave heed to the words of holy Inana, and chose from the troops as a messenger one who was eloquent of speech and endowed with endurance. {(1 ms. adds:) …… to his messenger …….} Where and to whom will he carry the important message of wise Inana?"
[3] ibidem. "500-514. His speech was substantial, and its contents extensive. The messenger, whose mouth was heavy, was not able to repeat it. Because the messenger, whose mouth was tired, was not able to repeat it, the lord of Kulaba patted some clay and wrote the message as if on a tablet. Formerly, the writing of messages on clay was not established. Now, under that sun and on that day, it was indeed so. The lord of Kulaba inscribed the message like a tablet. It was just like that. The messenger was like a bird, flapping its wings; he raged forth like a wolf following a kid. He traversed five mountains, six mountains, seven mountains. He lifted his eyes as he approached Aratta. He stepped joyfully into the courtyard of Aratta, he made known the authority of his king. Openly he spoke out the words in his heart. The messenger transmitted the message to the lord of Aratta (...)"
[4] Para um resumo geral e comentário do restante da história, ver: VANSTIPHOUT, H. L. J. Epics of Sumerian Kings: The Matter of Arratar. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2003. cap. 2, p. 49-55.